'Paloma' reflete, com afeto, sobre história de mulher trans que quer casar na igreja
Diretor e roteirista Marcelo Gomes se inspirou na história ao ler uma matéria em um jornal de Recife há mais de 10 anos
Ainda que seja essencialmente um drama romântico, 'Paloma' poderia ser tratado como fábula sem qualquer problema. Afinal, este novo longa-metragem de Marcelo Gomes ('Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar'), estreia desta quinta, 10, tem uma premissa simples, quase singela: fala sobre Paloma, uma mulher que sonha em casar com Zé, seu marido, na igreja. O entrave para realizar esse sonho? Ela é uma mulher transexual.
Marcelo conta que a história é realidade. Nasceu a partir de uma nota de jornal que o diretor e roteirista leu em Recife. "Abri o jornal e dei de cara com essa história, que é real. Fiquei muito emocionado por ser uma história cheia de contradições da nossa sociedade. É sobre preconceito e de fé. É sobre amor e ódio. É sobre afeto", diz o cineasta. "O Brasil é o país que mais promove violência contra a população trans. Era essencial contar uma história dessa, de afeto".
Depois disso, desse estopim de desejo, dez anos se passaram até o lançamento do filme, que passou pela Mostra e chega agora aos cinemas. Nesse meio tempo, Marcelo conversou com mulheres em situações similares, compreendeu melhor a realidade e desenvolveu o roteiro. Também determinou que era necessário e importante colocar atrizes trans para interpretar as personagens de mulheres transexuais no filme. Foi aí que surgiu Kika Sena, a atriz de Paloma.
Kika Sena, a chama de 'Paloma'
Muito do novo longa-metragem de Marcelo Gomes funciona por conta da atriz. Ela, que vem do teatro, criou uma Paloma que encanta: não só por conta de sua história, mas pelos detalhes de sua composição. O sotaque, o jeito de falar, a maneira que trata Zé, o olhar quando está falando sobre seu sonho em se casar na igreja. Tudo isso passa por uma atuação minuciosa da atriz, que faz sua estreia na tela grande dos cinemas com esta produção de Marcelo.
Segundo o cineasta, o que conquistou sua atenção no trabalho de Kika não foi o teste para o papel, mas seu olhar. "Eu estava insegura em encarar esse papel no cinema. Era meu primeiro filme. Achei que não ia dar conta", comenta a atriz. A partir daí, porém, criou-se uma relação de confiança com Marcelo Gomes. Café vai, café vem e a segurança da atriz foi surgindo. Ela, aos poucos, entrou no mundo dessa personagem tão importante, tão real e, enfim, verdadeira.
"Ela que trouxe toda a prosódia para Paloma", explica Marcelo. "Trouxe um sotaque lindo, um jeito de falar que é quase um canto. É hipnótico o jeito da personagem falar. A gente nem falava nada pra ela. Deixamos tudo fluir".
Importância do filme
A partir dos vários olhares para a história de 'Paloma', também são várias as importâncias do filme. Pra começar, assim como 'Carvão', o longa-metragem fala sobre um Brasil pouco visto e comentado. Uma realidade rara nas telas. "Saloá, [a cidade onde se passa o filme], é um microcosmos do Brasil", diz o cineasta. "'Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar' também é, mas de um capitalismo selvagem. Saloá é de um Brasil profundo conservador e machista".
Paloma, afinal, pode até conviver. Trabalhar, ajudar os outros. Mas não pode sonhar. Quando sonha, é rejeitada. Kika ressalta, hoje, como o filme é importante no cenário do Brasil de hoje. "É uma questão política", diz a atriz. "Estamos em um momento de muita efervescência dessas corpas no cinema e no teatro. 'Paloma' não entrou na crista da onda. Há 10 anos, Marcelo já estava pesquisando sobre esse filme. Mostra a essência do filme: é político e é poético".
Jornalista especializado em cultura, gastronomia e tecnologia, cobrindo essas áreas desde 2015 em veículos como Estadão, UOL, Yahoo e grandes sites. Já participou de júris de festivais e hoje é membro votante da On-line Film Critics Society. Hoje, é editor do Filmelier.
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