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Crítica: ‘Fúria Primitiva’ não é ‘John Wick’ (e isso é bom)

Por bons motivos, a saga de John Wick foi considerada o principal referente no cinema de ação da última década: houve tentativas (umas melhores que outras) de replicar seu mundo criminoso abundante em neon e suas complexas, mas estilizadas, sequências de combate. Por isso, pode-se entender, até certo ponto, que Fúria Primitiva (Monkey Man) – nos cinemas brasileiros a partir de 23 de maio – seja comparado quase por reflexo à saga estrelada por Keanu Reeves.

E, de fato, há algo disso, pelo menos na superfície. Em sua estreia como diretor, Dev Patel (lançado ao estrelato por Quem Quer Ser um Milionário?, de Danny Boyle) replica parte dessa estética. Principalmente, é o que resgatam os trailers e materiais promocionais: um protagonista trajando terno, lutando contra múltiplos oponentes com tanto estilo quanto brutalidade, filmado com câmera na mão em cenários saturados de cor.

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No entanto, esta produção toma emprestado de influências muito mais diversas… e tem muito mais a dizer do que um típico filme de ação. Para o bem e para o mal, Fúria Primitiva não é John Wick.

Tanta fé e folclore quanto ação e vingança

Como John Wick – e muitos outros clássicos de ação e artes marciais, na verdade –, a história de Fúria Primitiva é uma história de vingança. No entanto, os motivos de seu personagem não são claros no início. O filme começa com um flashback à infância do protagonista (Patel), cercado pela natureza, o amor de sua mãe (Adithi Kalkunte) e contos sobre o deus hindu Hanumân, meio homem e meio macaco. É tudo o que Patel e seus co-roteiristas, John Collee (Atentado ao Hotel Taj Mahal) e Paul Angunawela, nos dão antes de lançar nosso protagonista, já adulto, de frente para um ringue de lutas clandestinas, ensanguentado e usando uma máscara de macaco. Ele perdeu a luta, algo que aceitou por um acordo para ganhar dinheiro. Aos poucos, conhecemos os objetos de seu ódio: fazendo-se chamar “Bobby”, ele consegue um emprego como lavador de pratos no restaurante de Queenie (Ashwini Kalsekar), na verdade uma fachada para uma rede de prostituição e tráfico de pessoas. Assim, ele pode se aproximar do corrupto chefe de polícia, Rana Singh (Sikandar Kher), a quem pretende assassinar.
A máscara de macaco não existe sem motivo (Crédito: Diamond Films)
O porquê pode ser intuído por brevíssimos flashbacks de corte quase impressionista, mas não conheceremos a verdade completa até muito depois. É uma decisão ponderada: assim como há uma razão cultural para o herói de Fúria Primitiva usar uma máscara de macaco, também há uma para que sua jornada siga esse caminho de vingança, dor e eventual reencontro com a fé. Patel e companhia dão um toque contemporâneo ao mito de Hanumân (algo que exploraremos mais adiante). Isso nos leva às sequências de combate. Pode-se pensar que, no início, a decisão de usar movimentos de câmera bruscos e enquadramentos fechados é uma representação da torpeza inicial do protagonista, mas esse estilo para filmar as lutas continua mesmo nos pontos mais avançados da narrativa. Neste aspecto, o filme não poderia estar mais distante de John Wick, embora seja uma tentativa louvável de Patel em um gênero complicado. Mas isso pode ser perdoado porque, na verdade, Fúria Primitiva é um filme muito mais interessante quando se afasta da ação e transforma sua história de vingança em uma parábola de justiça social e comentário sobre o nacionalismo contemporâneo na Índia, por meio de um relato folclórico hindu.

Fúria Primitiva, seus mitos e paradoxos

O verdadeiro poder do que Patel e sua equipe alcançam com Fúria Primitiva está em usar os mitos do hinduísmo para comentar, precisamente, sobre o auge contemporâneo do nacionalismo hindu, sob o governo de Narendra Modi e o Partido Bharatiya Janata, com sua retórica extremista e políticas repressivas principalmente contra muçulmanos, cristãos e outras minorias culturais. O filme de Patel reinterpreta o mito de Hanumân – um deus do hinduísmo venerado através das múltiplas castas por sua força, mas também por sua compaixão e retidão – como uma história de vingança e justiça social, contra o deslocamento e a opressão daqueles que se justificam no hinduísmo: o personagem de Baba Shakti (Makarand Deshpande) representa essa figura no filme.
Fúria Primitiva toma emprestado de textos sagrados e do folclore hindu, como o Ramayana (Crédito: Diamond Films)
O discurso de Fúria Primitiva propõe, em resumo, a necessidade de retornar a um verdadeiro hinduísmo para resistir a essa opressão, o que poderia ser interpretado como a tão contraditória quanto polêmica ideia de combater fogo com fogo. Embora também não seja como se Hanumân tivesse derrotado pacificamente a Rávana, o deus demônio e raptor de Sita, segundo o texto sagrado Ramayana. Talvez haja algo de verdade no que representa a comunidade de hijras (o terceiro gênero na Índia), que adoram a deidade Ardhanarishvara, uma deidade composta pelo deus masculino Shiva e sua consorte, Parvati: o perfeito equilíbrio de feminino e masculino, paz e violência, criação e destruição, caos e devoção. É aqui onde Fúria Primitiva consegue transcender a banalidade de outros relatos de ação e vingança como John Wick (suas influências, na verdade, têm raízes mais fortes e diretas na Ásia, desde o coreano Oldboy até o tailandês Ong-Bak). Bebe da fonte do folclore hindu, mas pode ser lido como uma história de resistência que extrapola a qualquer povo que experiencie opressão e discriminação em nome de uma espiritualidade corrupta, transformada em arma do nacionalismo. E por isso, Dev Patel entrega um dos filmes de ação mais interessantes e com mais a dizer da última década.

Fúria Primitiva chega aos cinemas brasileiros em 23 de maio.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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Lalo Ortega

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