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Crítica de ‘Golda’: Olhares simplistas

Sempre que se aborda a vida de um personagem histórico para adaptá-la ao cinema, surgem os problemas das licenças dramáticas. Resumidamente, a fidelidade – e complexidade – histórica nem sempre prende e entretém. No caso de Golda – nos cinemas do Brasil desde 31 de agosto – cabe questionar até que ponto é válido levar essas licenças, a ponto de transformá-las em omissões.

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Afinal, o filme dirigido por Guy Nattiv (Skin) aborda uma das figuras políticas mais controversas do século XX, durante o que talvez tenha sido o período que condenou sua carreira como Primeira Ministra de Israel.

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Embora a direção de Nattiv seja eficaz em transmitir as terríveis pressões psicológicas da guerra para sua protagonista, parte de um roteiro escrito por Nicholas Martin (Florence) que apresenta uma visão simplista e unilateral dos eventos.

A culpa do poder

A narrativa de Golda é enquadrada pelo testemunho da Primeira Ministra (interpretada por Helen Mirren sob polêmicas camadas de maquiagem) perante a Comissão Agranat, que investigava as razões pelas quais o exército israelense foi pego de surpresa por ataques do Egito e da Síria, que deram início à Guerra do Yom Kippur. Assim, damos um salto no tempo para o dia anterior ao ataque fatídico, com Meir recebendo o relatório de inteligência que garantia a iminência do ataque. Por outro lado, estão os membros céticos de seu gabinete que duvidavam de um ataque em pleno Yom Kippur. A Primeira Ministra, considerando o custo político de atacar primeiro, decide tomar medidas preventivas tímidas. Como a história mostrou, a surpresa teve um enorme custo humano para Israel e para a posição política de Meir.
A guerra é vista a partir da posição dos líderes políticos e militares (Crédito: Diamond Films)
Golda se desenrola ao longo dos dias da guerra, detalhando as tensões e decisões dentro do gabinete da protagonista e, principalmente, as complicadas negociações da ministra para obter o apoio do Secretário de Estado americano, Henry Kissinger (Liev Schreiber), com o país americano afetado pelo Watergate. Vale ressaltar que, apesar da brutalidade e do custo devastador em vidas humanas que a guerra teve – especialmente nos primeiros dias -, nunca vemos um conflito armado na tela. Não aparece um soldado ferido nem vemos de perto armamento causando destruição ou mortes. Tudo é à distância: a partir de um helicóptero que sobrevoa uma zona de conflito ou do centro de comando militar, por meio de transmissões de rádio. Enfatiza-se a distância entre aqueles que saem para oferecer suas vidas e aqueles que os comandam a fazê-lo. No entanto, um aspecto brilhante do filme de Nattiv é sua capacidade de evocar os horrores da guerra através do puro som, intercalado com breves e abstratos vislumbres de imagens de arquivo. É essa decisão estética que enfatiza o que o roteiro e a atuação de Mirren já sugerem: um profundo senso de responsabilidade e culpa por enviar tantos israelenses para uma morte certa. Estritamente nesse sentido e pelo menos sob a ótica de quem escreve, Golda consegue o que, atrapalhado por sua verborragia desnecessária, Oppenheimer não consegue: nos mostra um personagem em uma situação moral impossível e nos faz sentir o peso de decisões das quais dependem milhares de vidas humanas.
Golda não contextualiza – e muito menos questiona – a complexa história de Israel no conflito (Crédito: Diamond Films)
O impacto do personagem seria ainda maior se o filme nos fornecesse mais detalhes – além de alguns diálogos – sobre quem ela era antes do conflito (Meir tinha 75 anos quando atuou como Primeira Ministra). Limitada pelo período da guerra e suas consequências, no entanto, Golda não nos permite conhecer sua protagonista além de seu cargo político e das terríveis decisões – e doença – que ela carregou durante esse tempo. Não é a única limitação da produção, nem a mais crucial.

Aulas (unilaterais) de história

A maior carência no roteiro de Martin e na direção de Nattiv é que eles oferecem uma visão extremamente simplista do conflito, seus matizes e complicados interesses internacionais em jogo. Além de algumas linhas de diálogo que estabelecem o ódio de Meir pelos cossacos – e, por extensão, a União Soviética – toda complexidade é simplesmente ignorada. O discurso de Golda parte de uma dicotomia simplista de “nós os bons, eles os maus”, sem sequer contextualizar – muito menos questionar – a posição de Israel e seus aliados no conflito árabe-israelense. O que serve ao propósito de nos fazer simpatizar com essa versão dramatizada de Golda Meir, pelo menos superficialmente. Mas, visto nesses termos simplistas, o filme de Nattiv acaba beirando a propaganda, apesar de seus momentos de genialidade audiovisual.

Golda já está em cartaz nos cinemas. Clique aqui para comprar ingressos.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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Lalo Ortega

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