"'Carvão' surge do desejo de falar de valores hipócritas", diz diretora
Carolina Markowicz e a atriz Maeve Jinkings falam sobre a inspiração para 'Carvão' e a importância do filme
As primeiras cenas de 'Carvão', longa-metragem brasileiro que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 3, começa com cenas que deixam qualquer um de boca aberta. Irene (Maeve Jinkings) recebe uma nova enfermeira em sua casa para cuidar do pai, idoso e de cama. É surpreendida, porém, quando a profissional diz que não tem jeito. "Ele não vai melhorar, só piorar". E agora? É aí que surge uma ideia absurda e aterrorizante, mas acatada pela família do ancião: substituí-lo por um traficante argentino, que precisa escapar de inimigos e fazer a sua vida em um novo lugar.
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A partir daí, a até então curta-metragista Carolina Markowicz explora o que há de pior no ser humano. São coisas que acontecem no interior do Brasil pouco visto e raramente comentado. Um Brasil profundo, mas que ajuda a compor um quadro político-social em que se pensa na morte, não na vida. E onde se busca sobreviverem de todas as formas.
"Cresci no interior de São Paulo e tinha muito essa coisa da família perfeita, da família tradicional. Tinha aquela coisa da diferença do público para o privado, com casos, casamentos que não eram de verdade", explica a diretora. "Passei a infância vendo isso. 'Carvão' surge desse meu desejo de falar sobre os valores hipócritas dessa nossa sociedade".
Afinal, além das decisões bruscas, violentas e surpreendentes envolvendo o pai da protagonista, 'Carvão' tem outros temas colocados à baila. Casos extraconjugais, mentiras, hipocrisia religiosa, um amor homossexual que acontece escondido. "Nos últimos anos, a gente viveu uma inversão brutal de valores, principalmente de instituições como a a tal 'família tradicional brasileira' e o 'Deus acima de todos'", comenta a cineasta, explicando sua ideia de filme. "Tudo se torna justificável com essas bandeiras. Tudo se tornou uma confluência para o que eu queria dizer com o filme".
'Carvão' e a pandemia
Curiosamente, Carolina começou a desenvolver a ideia de 'Carvão' antes mesmo da pandemia de covid-19 -- Maeve Jinkings, a protagonista, entrou no projeto ainda em 2016. No entanto, o texto do filme foi se transformando, principalmente com a chegada da pandemia, com discussões sobre morte, vida e sobrevivência. De 2016 para cá, o 'roteiro Brasil' deu guinadas e plot twists tão inesperados", diz Maeve. "Mais do que isso: 'nonsense'. Não conseguia entender a humanidade, a formação da sociedade brasileira, nossa relação com violência. O núcleo de poder e de violência, que estava mais centrado no traficante, agora fica mais centrado na família. O roteiro amadureceu".
A partir disso, 'Carvão' consegue, inclusive, trazer aspectos que viriam a ser revelados e se torna ainda mais atual e verdadeiro. O longa-metragem se aproxima, por exemplo, do que brasileiros puderam ver na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia, quando senadores descobriram que a rede de saúde Prevent Sênior enxergava a morte de pacientes como algo que fazia parte daquilo. Como algo comum, até mesmo positivo. Abria espaço, afinal.
"O filme não se propõe ser realista, mas a realidade foi minha inspiração. O ponto mais difícil foi compreender a decisão da personagem em deixar o pai dela descansar, digamos assim", diz Maeve. "O caso Prevent Sênior foi um mês depois da filmagem. Óbito era alta. Para compor a Irene, conversei com mulheres, passei tempo com elas e aprendi a humanizá-la. Aprendi a matar galinha. Aos domingos, ia pra missa. Certa vez, vi que estava tudo lá. A Irene estava no discurso daquele padre, que dizia que a gente tava vivendo a 'peneira de Deus'. É a naturalização da morte".
Jornalista especializado em cultura, gastronomia e tecnologia, cobrindo essas áreas desde 2015 em veículos como Estadão, UOL, Yahoo e grandes sites. Já participou de júris de festivais e hoje é membro votante da On-line Film Critics Society. Hoje, é editor do Filmelier.
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