Filmes

Crítica de ‘Caminhos Cruzados’: cruzamentos, trânsitos e transições

Nem o turco nem o georgiano fazem distinção de gênero gramatical, anuncia como epígrafe Caminhos Cruzados, novo filme do sueco Levan Akin (E Então Nós Dançamos) que chega aos cinemas em 11 de julho. Mas há outra surpresa linguística escondida no seu título ou, melhor dizendo, nas suas variantes por idioma que sugerem leituras múltiplas e fluidas, como a identidade do personagem no coração do seu mistério.

Onde o português nos sugere o cruzamento de caminhos, ou de destinos, entre personagens, seu título internacional em inglês, Crossing, alude ao ato de se mover de um lado – físico, geográfico, ou metaforicamente espiritual ou psicológico – para outro. Em seu original turco, assume outro significado: Geçiş, segundo o que este crítico pôde descobrir, se traduz como trânsito ou, mais especificamente, transição.

Em conjunto, todas essas interpretações são, em essência, o esqueleto de uma road movie: a viagem geográfica dos personagens supõe uma transformação interior. Assim é, pelo menos de início, como está estruturado o filme escrito e dirigido por Akin, premiado com um Teddy – o prêmio que reconhece o cinema queer – no Festival de Berlim 2024.

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Caminhos Cruzados começa com Lia (Mzia Arabuli), uma professora aposentada que busca, na Geórgia, sua sobrinha perdida, Tekla, uma garota trans que foi rejeitada pela família quando fez sua transição. Trazer a sobrinha de volta para casa é a última vontade da irmã de Lia, a recém-falecida mãe de Tekla. Seu caminho se cruza com o de Achi (Lucas Kankava), um jovem oprimido em casa por um irmão mais velho abusivo. Ele afirma conhecer Tekla e que ela disse que iria para a Turquia. Lia está decidida a encontrá-la, e Achi se oferece como seu tradutor para fugir de casa. Juntos, viajarão pelo Mar Negro para cruzar da Geórgia para a Turquia, em busca de Tekla em Istambul, onde seus caminhos se cruzarão com vários personagens que mudarão suas vidas.

Caminhos Cruzados (e perdidos)

O já mencionado é que Caminhos Cruzados não só opera dentro das convenções da road movie, mas também dentro do mistério. Lia e Achi transitam pelas ruas de Istambul em busca de Tekla, e as respostas os iludem. A tia só descobre que sua sobrinha, ao que parece, recorreu ao trabalho sexual para subsistir na cidade.
Passado e presente coexistem, desconfortavelmente, em Caminhos Cruzados (Crédito: MUBI)
Akin também alude a vários mistérios sobre seus personagens, que só são revelados pelos cruzamentos – e choques – entre eles mesmos. A perspectiva conservadora e nacionalista de Lia contrasta com a de Achi, que não vê perspectivas para o futuro. Ela fala sobre um passado onde as mulheres georgianas eram elegantes e sofisticadas. Ele só quer uma possibilidade de viver onde os velhos valores soviéticos não o sufocam. Nessa brecha de geração, de perspectiva e até de gênero, os rumos de Caminhos Cruzados divergem, se separam, se enredam e se confundem. É aqui que a cidade de Istambul começa a ganhar protagonismo. A direção de fotografia de Lisabi Fridell faz da cidade turca um labirinto opressivo: os edifícios, alguns de urbanidade moderna e outros convertidos em antiguidades em ruínas, misturam o passado e o presente. Suas ruas sinuosas e precárias os isolam e devoram, expressando a vulnerabilidade de todos eles, os demais no entorno – e especialmente pessoas como Tekla, discriminadas por suas identidades – que podem ser sujeitos.

Longa jornada para lugar nenhum

Pode soar pessimista, mas não é. Levan Akin consegue encontrar esperança em Caminhos Cruzados, começando com esse sincretismo do passado e do presente. O diretor também nos apresenta uma terceira protagonista, Evrim (Deniz Dumanlı), uma mulher trans que conseguiu transicionar, crescer e se afirmar em Istambul. Ela é a luz da possibilidade: representa tudo o que Tekla poderia ser (ou ter sido), se apenas as pessoas ao seu redor a tivessem aceitado e apoiado.
Há esperança em Caminhos Cruzados… mas não é para todos (Crédito: MUBI)
Evrim encarna uma esperança com o sabor agridoce da melancolia. A bondade pode triunfar, certamente, mas nem sempre consegue. O trânsito de Lia e Achi é para outros lugares, de compaixão e entendimento, mas seus destinos finais são condenados a permanecer ambíguos. Os cruzamentos de seus andares mudam suas perspectivas, os direcionam para novas possibilidades. Caminhos Cruzados nos apresenta uma fábula de corações presos entre o passado e o futuro, o que foi e o que pode ser se nos abrirmos ao amor, à compaixão e à aceitação sincera, longe das motivações da culpa. Tudo isso, claro, enquanto não for tarde demais. Para alguns, talvez seja melhor que permaneça a incerteza.

Caminhos Cruzados chega aos cinemas em 11 de julho, e ao MUBI em agosto.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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Lalo Ortega

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