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Crítica de ‘A Grande Fuga’: o privilégio de envelhecer

A Segunda Guerra Mundial tem sido tão explorada – e às vezes, imprudentemente embelezada – pelo cinema, que pode-se cometer o erro de tomar como garantido o que sobreviveu, privilegiados pela distância da retrospectiva. Mas há títulos do cinema bélico – vem à mente o documentário Eles Não Envelhecerão (2018), de Peter Jackson – que evocam a crueldade caprichosa da sorte em tempos de guerra: envelhecer é um privilégio. Essa sorte está no coração de A Grande Fuga (The Great Escaper), drama biográfico que estreou nos cinemas brasileiros em 27 de junho.

O filme é inspirado em fatos: em 2014, Bernard “Bernie” Jordan, veterano do Dia D, escapou do asilo de idosos na Inglaterra onde vivia com sua esposa, Irene, para viajar à França e assistir às celebrações pelo 70º aniversário do desembarque que mudou o rumo da guerra. No entanto, ele fez isso sem avisar a ninguém, então o pessoal do asilo pediu ajuda à polícia para uma busca assistida pelo Twitter. Quando descobriram seu paradeiro, a história viralizou e Bernie se tornou uma celebridade.

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É uma anedota terna, emotiva, que poderia se prestar ao sentimentalismo mais grosseiro ou até mesmo à comédia, como apresentado em alguns dos materiais promocionais do filme. E sim, por momentos, isso acontece. No entanto, graças em grande parte às atuações finais de Michael Caine e Glenda Jackson, A Grande Fuga é ocasionalmente elevado acima desse nível, e o roteiro de William Ivory tem coisas a dizer sobre a idealização da guerra.

Uma digna despedida para Michael Caine e Glenda Jackson

Ivory e o diretor, Oliver Parker (O Retrato de Dorian Gray), tentam expandir a anedota em direção ao drama e, acima de tudo, à introspecção. Nem sempre conseguem, e também não são ajudados pela edição de Paul Tothill (Orgulho e Preconceito), que decide cortar em momentos estranhos: interrompe cenas onde seria melhor deixar os silêncios, as expressões, ou a simples sequência lógica da ação. Felizmente, estão Caine e Jackson nos papéis principais que, além disso, são os encerramentos respectivos de suas carreiras: ele decidiu se aposentar, e ela faleceu no ano passado. E embora a anedota que inspira A Grande Fuga seja a história de Bernie, a adaptação, sabiamente, dá o mesmo peso a Irene (ou “Rene”, como é conhecida nesta versão).
A Grande Fuga é o último filme de Michael Caine e Glenda Jackson (Crédito: Diamond Films)
Ela é tanto âncora emocional de Bernie, como substituta do público. É a travessia de Bernie que nos fala sobre os horrores e traumas da guerra (mais sobre isso, em breve). Mas é Rene, no asilo, que proporciona os vislumbres necessários do amor da juventude e da iminência da morte para podermos sentir os sacrifícios de suas vidas. Não seria exagero dizer que os momentos mais importantes e emotivos de A Grande Fuga são proporcionados por Glenda Jackson, que facilmente traz os matizes e a profundidade necessários à sua interpretação para evitar o sentimentalismo barato. Curiosamente, o Bernie de Caine é ofuscado por Jackson e por um personagem secundário com um arco narrativo breve, mas bem definido e completo, cujo propósito real é ser um catalisador para as memórias e pensamentos do protagonista. É difícil conectar com Bernie como protagonista por boa parte do filme, e em parte é graças ao fato de que o roteiro evita seus traumas e culpas até já entrarmos no último ato. E são, também é preciso dizer, um tanto óbvios para mantê-los em ambiguidade por tanto tempo. Felizmente, Caine também traz profundidade em sua interpretação. E não só isso, A Grande Fuga tem algo a dizer sobre como se representa os veteranos nesse tipo de histórias.

A Grande Fuga: contra a idealização da guerra

Que fique claro que nunca deixará de ser importante lembrar e legar a história: é o que deve evitar que a repitamos (esperançosamente). E as guerras (sobretudo a que nos concerne, em que se lutou contra os ideais tiranos dos nazistas) implicam em sacrifícios incalculáveis que merecem ser reconhecidos e honrados. A paradoxo é que, com o passar do tempo, honrar se torna celebrar, e isso se degrada em uma idealização perigosamente banal. O sacrifício se converte em um heroísmo cuja vaidade não satisfaz aos honrados, mas sim aos que os admiram.
Embora convencional, A Grande Fuga argumenta sobre a representação da guerra no filme (Crédito: Diamond Films)
Nos momentos mais poderosos de A Grande Fuga, Bernie e Rene falam sobre a verdade da guerra, sua brutalidade aleatória, caótica e sem sentido, que tirou a vida de uns e perdoou outros. Milhões foram sacrificados ao abismo da defesa contra a tirania. Qual é o heroísmo de ter estado no lugar onde as bombas não caíram, por ditado da sorte? É ela, cruel e arbitrária, que decidiu quem poderia levar vidas completas até a velhice. O protagonista lida com uma culpa não resolvida, sem dúvida. Mas seu argumento desperta perguntas sobre as formas como recriamos e representamos a guerra na tela, com sentimentalismos e idealizações que, às vezes, ameaçam tornar desejável sua repetição. Se algo deve nos deixar A Grande Fuga, além de duas dignas despedidas a duas lendas, é a importância de dar voz a quem viveu os horrores na própria carne, sem os adornos, sentimentalismos e manipulações das convenções dramáticas comerciais.

A Grande Fuga já está em cartaz nos cinemas brasileiros. Compre seus ingressos.

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Lalo Ortega

Lalo Ortega é crítico e jornalista de cinema, mestre em Arte Cinematográfica pelo Centro de Cultura Casa Lamm e vencedor do 10º Concurso de Crítica Cinematográfica Alfonso Reyes 'Fósforo' no FICUNAM 2020. Já colaborou com publicações como Empire en español, Revista Encuadres, Festival Internacional de Cinema de Los Cabos, CLAPPER, Sector Cine e Paréntesis.com, entre outros. Hoje, é editor chefe do Filmelier.

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Lalo Ortega

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